terça-feira, 6 de março de 2012

Mulheres I

  Foi meu pai que me falou dela. Mulher forte e boa. Boa.Viveu para quem com ela estivesse: as irmãs, sobrinhos, marido, filhos... Pouco viveu para ela mesma. Desde cedo trabalhou nas minas de carvão em Portugal. Penso como deve ter sonhado com o dia em que saísse dali. Fora. Do lado de fora daquele buraco insalubre. Saiu. Pena ser lá fora tempo de guerra. Portugal de Salazar. Mulheres sozinhas a cuidar dos filhos enquanto seus homens procuravam o sol de outras terras. Nem sempre encontravam. E assim foi com ela. Seu nome, Felicidade (poderia ser Severina). Igual a tantas outras portuguesas, mas morena. De cabelos pretos. Mãos de trabalho. Lavava e deixava a roupa no quarador. Também benzia quem precisasse. Volta e meia sua imagem me vem à cabeça. Quando levanto as saias compridas (que teimo em usar), prendendo assim meio de lado, como uma lavadeira na beira do rio (rs!), sou o que nela há em mim. Me orgulho da força da mulher trabalhadora. Lamento as poucas chances que ela, Felicidade, teve de realizar seus sonhos. Viveu o tempo que pode. Viu os filhos crescerem. Veio para o Brasil. Me viu nascer. Ela queria uma menina e não conseguiu ter. Teve netas, quatro. Pouco pode estar com elas. Nem posso mostrar sua foto. Não a tenho. Num tempo de tantas imagens, dela só histórias. E de palavras ditas, não escritas. Até porque ela não conhecia o desenho das palavras. E eu que tanto amo cada contorno das letras não consegui fazer dela poema, e sim prosa.

sexta-feira, 2 de março de 2012

o moço de poucas palavras apareceu
rondou a casa
levou a moça
suave como sempre
tempo, tempo, tempo
vou te fazer um pedido...
desde cedinho aprendemos a ficar juntas
principalmente se o medo nos alcança
e olha que já nos pegou algumas vezes
cuidamos de espantá-lo
seja como for
com rezas de benzedeira forte
conversas intermináveis
choro de lavar tudo
risos de até doer a barriga
somos de verdade feitas uma pra outra
viemos pra isso
porque só quando somos as duas conseguimos
uma dá a vez a outra
toma conta do lugar
prepara o tempo bom depois da baita chuva
se uma treme
a outra se faz tão forte que sustenta as duas
quando uma pede
a outra agradece
sempre assim
duas
multiplicadas em outras
em meninas e mulheres
as que dançavam no quarto com música emprestada da festa do vizinho
que espantavam mosquito em dia quente
brincavam com os robes da avó
com as bonecas de cheiro bom
e os parapedros da feira de quinta
dividiam o quarto
ansiavam pela hora de voltar pra piscina do quintal
traziam amigos pra casa
e namorados pra rede da varanda
o cotidiano no seu melhor e pior
as que se olhavam quando ninguém lembrava de fazer issso
as mães filhas irmãs
dividimos tudo
acertamos as contas diárias com o passado
sonhamos com futuro
as duas
porque vai ser assim pra sempre

Dulce Moura