terça-feira, 21 de setembro de 2010


Hoje é dia de feira. Sempre gostei de ir à feira. As cores e os cheiros mudam a rua . Desde pequena gostava do rebuliço dos feirantes perto de casa. As palavras soltas como pregões antigos. Os homens e mulheres que pareciam não dormir como a gente. Estranhava almoçarem ainda bem cedo, misturando o cheiro da comida com os da manhã. Minha mãe cuidava para que a casa recebesse a feira. Tudo naquele dia era esperado: as frutas durinhas na fruteira, a jardineira de legumes, os sucos doces, a bala de coco da senhorinha da barraca da esquina, o peixe estalando na frigideira. Minha avó também vinha nos visitar no dia da feira. Morávamos numa casa de quintal ainda de chão de terra como todos os outros da rua. Eu e minha irmã brincávamos de fazer comidinha com terra e capim. Os brinquedos ficavam muitas vezes enterrados no quintal quando perdidos entre uma brincadeira e outra. Um personagem das nossas histórias era o Para Pedro. Boneco de plástico. Estático. Os movimentos possíveis só mesmo na nossa imaginação de meninas. Nada mais desafiador que fazer daquele ser tão sem vida um companheiro perfeito. Toda semana com a feira chegava um novo Para Pedro. O fim de quase todos era a eternidade do quintal. Hoje é dia de feira. Todo dia ainda é dia de feira. Em mim estão as barracas, os panos coloridos e os aromas diferentes. Dali vem muita coisa. A primeira invasão das texturas, odores e paladares de fora. Misturas de gostos. Naturalmente. É assim que se começa a vida. De mansinho ela chega e apresenta sua cartela de cores. Escolhi o vermelho,o verde das verduras, o arco-íris dos saquinhos de temperos. Comecei desse jeito a perceber o tanto que tinha para experimentar.


Dulce (Retalhos III)

terça-feira, 14 de setembro de 2010


Costureira. Foi assim que respondeu quando a assistente do médico lhe perguntou qual a sua ocupação. A filha ao lado estranhou. Muitas vezes já ouviu a mãe dizer que era 'do lar'. Do lar. Nem mais costurava. Os problemas de saúde recentes a afastaram de suas atividades mais urgentes . Não mais varria o quintal todo dia. Fazia a comida. Valorizava ainda o cheiro do refogado que ia longe,despertando a fome dos que estavam por ali. As andanças pelas ruas do bairro restringiram-se a ida ao mercadinho. Arriscava andar sozinha. A máquina de costura num canto do quarto. O marido também. Mal se falavam. Estranhavam-se. Filhas adultas com suas vidas cheias. Netas. Costureira. Da memória saiu a resposta. A mãe dela sim era costureira. Profissional. Ela herdou a habilidade. E quando mais precisou fez valer o legado.




dulce (Retalhos I)
se a vida virasse poema
quem dera fosse sem rimas
longe das métricas
chegadinho ao gosto do povo
com suas palavras simples
suas frases de efeito
cutucando a alma da gente
com essa vida tão real
que cabe sim no poema

dulce
podia valer o escrito
e então seu nome
ganharia forma de moço
e me levaria pela mão
dulce

domingo, 12 de setembro de 2010

nunca fui de arrumar gavetas

papéis misturados

uns absolutamente sem importância

alguns esquecidos por querer

se é necessária a ordem

saio depressa


aqui sim

arrumo palavras

dulce

sábado, 4 de setembro de 2010

entregues
ao descaso dos discursos
vazios
impróprios aos ouvidos dos que nada podem fazer
quando a hora de encarar de frente a verdade
é a mesma hora de lutar pela vida
ali o confronto está entre os de fora do jogo sujo
agora os que escolhem entre o viver e morrer
sofrem as consequências
do não feito
de ter se deixado como está
por tanto tempo
pelo tempo suficiente pra se mudar
enquanto ainda havia força
Dulce
Palavras ficam
nos poros
firmam-se ao leve toque
entram
diluem-se
no sangue
E lá
dentro de nós
nos intimam a organizá-las
coerentemente
mesmo que insanamente
embaralhem-se para confundir
Construir linearmente um enredo
a narrativa considerada compreensível
é o trabalho imposto pela vida
A decisão de como fazê-lo é nossa
Dulce