segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Cotidiano


Desde cedo na rua. Chegou tirando a roupa e correndo para o banheiro. Era como um ritual. Limpava as sujeiras do dia. O trabalho consumia: incomodando, cutucando o juízo. Quem diria onde iriam parar os sonhos de levar poesia para a realidade dura daqueles com quem dividia sua vida. Passaram-se os anos e quase não se deu conta do tempo. Olhava para o espelho e via sinais. Sabia não poder sair de casa como quem displicentemente acorda e vai. Os olhos marcavam a expressão preocupada, uma noite interrompida pelos contínuos flashes do dia. A água escorria. Não era para lavar o cabelo porque já não secaria antes de dormir. Não deu. Sempre gostou de cabelo molhado. Da janela da cozinha, enquanto esquentava o jantar, podia ver as luzes do morro. Cada vez mais luzes, cada vez mais gente. Lembrou de Drummond e dos amores possíveis por ali. Histórias tão parecidas com tantas outras dos romances lidos desde mocinha. Nesse cenário, nenhum glamour. Nem mesmo a névoa de um voal para trazer a idéia de sonho. Quando ele chegou já encontrou tudo pronto, como sempre foi. A mesma o esperava sem a ansiedade do início, mas sentindo-se bem ao vê-lo. Era seguro estar com ele. Sempre foi assim. Imaginar o contrário chegava a doer. Elogiou o cheiro da comida sem perceber o cheiro bom que vinha da mulher. Tudo tinha o momento certo. Não era a hora para olhares mais atentos, nem mesmo para sensações eróticas. A hora do jantar. Também não cabia o tal sonho. Sonhar também exigia clima. Ao notar que estavam vindo, os sonhos, plantava-se com mais força, determinando o caminho do real. Não era a hora do sonho. Lia sempre. No início descobrindo várias sensações que não tinham nome ainda. Depois, aprendendo a nomear, sentimentos e pessoas inimagináveis. Com o tempo, mesclando obrigação e prazer. Tantas mulheres apresentaram-se nas linhas dos seus livros que nem lembra mais de muitas. Outras, foi por acaso, nas músicas, filmes, por aí que conheceu. Sabe ser delas algumas palavras usadas por descuido. Também delas um olhar ou outro mais atento diante de situações aparentemente corriqueiras. Eram suas as epifanias das personagens de Clarice. A casa alaranjada de Adélia era igualzinha a sua do Encantado. Mulheres! E as personagens que se desnudavam nos filmes. Frida, Piaf, Carmem... Tantas dores e profundidade no viver... Era bom saber que se amava tão profundamente. Ela não sabia se havia concretizado esse desejo de amar até não poder mais. Amava no sonho. Tinha hora certa. Hora desejada pelo cansaço. Não agüentava sonhar muito, que o sono vinha rápido. Antes da história tomar rumo certo. Era assim. Tudo pronto para eles. Se demorasse um pouco mais a comida queimava. Panelas boas e bom fogão adiantam a vida, encurtam o sonho.

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